Sobre a Inteligência

Lembro bem de um episódio da minha infância, uma daquelas lembranças aparentemente insignificantes que têm uma incrível influência inconsciente em nossas personalidades. Quando eu era bem pequenininho, não gostava muito de ir à escola, e minha avó, convicta de que estava contribuindo com a formação de minha personalidade, resolveu me fazer uma analogia sobre a natureza da inteligência. Disse que ela era como um balão que ia enchendo, e simbolizou isso com as duas mãos em concha, que iam vagarosamente abrindo. “Um balão? Então uma hora ela estoura?”. Não lembro se fiz realmente essa pergunta, mas sem dúvida ela ocorreu em minha cabeça infantil.

Por anos e anos, essa bobagem esteve presente, exercendo uma influência constante sobre a minha consciência. Dessa forma, por quase toda a minha vida vi a inteligência como uma coisa contida, uma coisa limitada. A ênfase não estava no abrir-se para uma realidade infinita (o que é, de fato, a Inteligência), mas sim o eterno e custoso processo de acumular conhecimento. A inteligência, sobre esse aspecto, não seria nada mais do que o ajuntamento de informações, fatos, fórmulas. Mas a Inteligência não é apenas isso, embora passe por isso.

A Inteligência é a percepção da realidade tal como ela é, no momento em que a consciência a percebe. E isso não é coisa que pode ser medida ou quantificada. O máximo que um teste de QI pode fazer por você é determinar a sua capacidade de análise lógica. Por mais alto que seja o seu, isso não significa que você tem uma grande capacidade de apreender a realidade tal como ela é, mas apenas que você possui uma boa capacidade de raciocínio, que não passa de um instrumento da mente para compreender abstratamente a realidade.

Vivemos em tempos estranhos. A ignorância é tomada como conhecimento, e a burrice como inteligência. O “cientificismo”, por exemplo, prega abertamente que o ser humano deve, de agora em diante, ter todas as suas ações pautadas pela ciência. Essa é uma das maiores boçalidades da cultura moderna. Oras, que é Ciência? Pode qualquer ciência ser mais do que o estudo de um recorte minúsculo da realidade? Pode essa série de recortes da realidade substituir a realidade mesma? Evidente que não, mas muita gente acredita nisso. Assim, nada que não foi “cientificamente comprovado” existe. Oras, então TUDO pode ser “cientificamente provado”? TUDO pode ser analisado em laboratório, obedecendo a padrões científicos? Todos os fenômenos podem ser analisados cientificamente e, mesmo que isso fosse possível, existiria tempo para tanto, visto que a realidade é infinita? Se não há tempo para isso, como é que as vidas humanas podem ser pautadas pela ciência?

Basta uma meia dúzia de perguntas para botar o “cientificismo” por terra, e com ele uma legião de cientistas e pseudo-filósofos que negam o sobrenatural, o metafísico (entre eles, Emanuel Kant e os positivistas). A ignorância da realidade metafísica é tomada como conhecimento da inexistência dela e, mais do que isso, como dogma inquestionável de que ela não existe. Nessa patacoada está boa parte da comunidade acadêmica, científica, os ateus e os materialistas. E isso tudo é um legado das “Luzes”, da “Razão”, da Modernidade orgulhosa de sua própria ignorância.

A Transcendência, que é o fundo de nossas vidas, é extirpada das consciências, como se tira um tumor. Na verdade, ela não é extirpada, mas as pessoas simplesmente fazem um esforço tremendo para assim acreditar, afinal de contas, ter uma religião, uma espiritualidade, acreditar que Deus existe, tudo isso não passa de superstição, de charlatanismo, de “auto-engano”. Uns poucos “iluminados” acreditam piamente que são mais espertos do que gerações e gerações e gerações de pessoas de todas as culturas do planeta. E os avanços da técnica científica e da tecnologia ajudam a camuflar essa terrível bobagem, fazendo essas pessoas acreditarem que existe alguma relação de causa e efeito entre o avanço científico e o abandono da Transcendência.

O “eu”, o “penso, logo existo” não pode ser o fundamento último da realidade. Se o “eu” fosse a base última de tudo o que existe, então cada um de nós viveria em realidades desconexas, sem a menor possibilidade de comunicação, de diálogo. Você realmente acha que este texto que agora escrevo foi uma criação da sua mente?

A Modernidade legou poder total ao “eu” e logo em seguida teve esse mesmo “eu” massacrado por uma série de teorias psicológicas criadas por ela própria (psicanálise, behaviorismo, etc). O “eu” foi erguido às alturas e logo em seguida reduzido à miséria. Não se pode dizer que não o fez por merecer.

13 comentários:

Unknown disse...

Opa! Gostei muito, Gustavo! Como físico e católico apostólico romano convicto, fico particularmente satisfeito com os trechos em que você critica o "cientificismo".

Apesar de não ter lido e aprofundado o pensamento do autor, vou correr o risco de lhe trazer esta citação de Poincaré, da introdução de "O valor da Ciência" (que ainda terei o prazer de ler).

"Se não devemos ter medo da verdade moral, 'a fortiori' não devemos ter medo da verdade científica. E em primeiro lugar, esta não pode estar em conflito com a moral. A moral e a ciência têm seus domínios próprios, que se tocam mas não se penetram. Uma nos mostra que fim devemos visar; a outra, sendo dado o fim, nos faz conhecer os meios de atingi-lo. Portanto, jamais podem
contrariar-se, uma vez que jamais podem encontrar-se. Não pode haver uma ciência imoral, assim como não pode haver uma moral científica." (Poincaré)

ahh! Ela também pode ser encontrada no meu perfil no Orkut rsrs Mas, caso queria ler um pouco mais, recordo-me de ter encontrado a introdução do livro através do mestre dos magos moderno: o Google. Já faz um tempo que a li, mas recordo que vale a leitura!

Também mando um aplauso especial para a frase:

"E isso tudo é um legado das “Luzes”, da “Razão”, da Modernidade orgulhosa de sua própria burrice."

Continue pensando bastante e escrevendo cada vez melhor, meu caro! E fique com Deus! =)
Marcos Rabelo (do Marista rsrs)

Gustavo disse...

Muito obrigado pelo comentário, meu querido, gostei muito. Muito bom mesmo esse trechinho que você postou do Poincaré. De fato, complementa o que foi dito ao longo do texto. Valeu!!

Anônimo disse...

Não sou católica como o cara que comentou (apesar de ter feito sete anos de catequese, odeio a Igreja Católica... é tanta hipocrisia que me irrita), mas fiz questão de ler o final pra todo mundo! Concordo contigo na maior parte, mas lendo o texto parecia que eu lia o livro do Richard Dawkins pregando o contrário. De toda forma e apesar de discordar em algumas partes (e isso não quer dizer que eu acho que você está errado. Opiniões diferentes, só isso...), o texto é sem comentários. Muito bom. Já te desejei muito sucesso, mas não custa nada desejar de novo :D Beijão, sucesso Gustavo!

Suzane Lima disse...

Poxa, é bom vc ver o que pensa escrito assim, estruturadamente. Concordo com o que vc disse, entretanto não acho que uma crítica a religiosidade/esoterismo ou ao cientificismo possa vangloriar o outro, isto é a religiosidade é ...(uma série de adjetivos ruins), por isso o cientificismo é bom, ou vice-versa. Infelizmente há pessoas que pensam que o defeito de um serve de qualidade ao outro (mas não estou querendo dizer que vc quis dizer isso, é só mesmo um comentário , o que de fato é pra ser, hehehe).
Enfim, qualquer coisa terminada com "ismo" tende a ser atacada quando cria leis e dogmas, quando pensa compreeender ou poder compreender tudo quanto existe, quando começa a julgar-se sábia.
Adorei o negócio de a inteligência ser um balão que cresce, acho que o momento em que esse balão estoura é o momento em que a pessoa, de tata coisa que sabe, já leu e viu, fica louca (literalmente). Conheço alguns casos assim, lá onde moro mesmo tem um cara que é pós-pós-reformado, só que mora na rua e quase não fala (só não sei como sabem que ele é tão estudado, o cara é louco, será que perguntaram isso foi pra ele? Mas eu já ouvi ele falando em outra língua que não sei qual é).

PS.: Achei seu blog pesquisando na intenet sobre o professor Gilson Sobral. Adorei seu blog. Irei acompanhá-lo. Um abraço!

Gustavo disse...

Obrigado, Suzane!

Mariana disse...

Há pessoas (e não são poucas) que preferem o "comprovar" ao "sentir"... mal sabem elas o quão grande é sentir!

Gustavo disse...

O "sentir" é infinitamente maior ao "comprovar", assim como a Realidade é infinitamente maior do que a Ciência. Prova disso é que tudo o que é comprovado precisa ser antes sentido. A Ciência é uma construção humana, a Realidade, não.

Anônimo disse...

Olá Gustavo!
Parabéns pelo blog, muito pertinente. O mesmo vale para suas postagens no orkut.
:)

um abraço,
Scharlene M.

junim disse...

A ciência pode lidar com o que é observável. A pergunta é: se algo não é passível de comprovação científica, é porque não observável, e assim como você pode afirmar que esse algo existe?
A ciência é uma construção humana, mas é a única que nos permite entender como as coisas funcionam. Pode ter suas falhas (em relação ao quê?), mas nada se compara à ciência.
"Sentir" não é maior que comprovar, nossos sentidos nos enganam constantemente.

Gustavo disse...

"A pergunta é: se algo não é passível de comprovação científica, é porque não observável, e assim como você pode afirmar que esse algo existe?"

Você está invertendo as bolas. Tudo o que existe nesse exato momento é observável e é impossível de ser comprovado cientificamente. Os fatos concretos, tal como acontecem na realidade, não podem ser comprovados cientificamente. A Ciência só pode estudar ASPECTOS de determinado fato, isolando-o dos demais. Por exemplo, pegue um tomate. Você pdoe estudar a forma do tomate, a genética do tomate, o gosto do tomate, o cheiro do tomate e até mesmo o preço do tomate. Cada um desses ASPECTOS pode ser estudado por uma ciência em particular, mas NENHUMA CIÊNCIA pode estudar o tomate COMO UM TODO. O tomate como um todo está disponível apenas à PERCEPÇÃO HUMANA, e não a qualquer ciência que seja. Assim é com tudo o mais. Mas esse é mesmo um dos mitos mais difundidos de nossa era: o de tomar a Ciência pela Realidade. A Ciência está contida na Realidade, e não o contrário. Se a Ciência fosse "a única maneira de permitir entender como as coisas funcionam", como você disse, deve ter sido um verdadeiro milagre o ser humano conseguir sobreviver por tantos milênios sem entender patavinas da realidade, já que a Ciência é uma invenção relativamente recente para a espécie humana. No mais, nossos sentidos podem até nos enganar, mas são a forma mais direta com que entramos em contato com a Realidade.

Gustavo disse...

Outro erro muito comum é tomar a Tecnologia pela Ciência. Muitas vezes você consegue fazer coisas e máquinas interessantíssimas sem ter idéia de como funcionam. É claro que o grande avanço da Tecnologia nos últimos anos está intimamente ligado ao avanço da Ciência, mas ainda assim são duas coisas diferentes. Parte dessa inversão de percepção (achar que a Ciência é maior do que a percepção direta) se deve ao otimismo resultante dos grandes avanços tecnológicos que a Ciência ajudou a proporcionar.

Júlia hormann disse...

O "eu" é muito menos do que isso numa sociedade ocidental atual.
Hoje, o "eu" é quase uma compra e venda de uma imagem novamente comprada e vendida. A sociedade do espetaculo tá aí, pra dizer que na verdade, de "eu" quase ninguém tem!
Diga-se o orkut e suas fotos necisistas (como as minhas e as de tds nós).
E na verdade eu acho mesmo, que o "meu" deveria ser de todo mundo e o de todo mundo deveria ser meu. Como uma sociedade mimerconianamente. Longe do comunimo!! Em falar nisso, ja leu Werber?

Hermes C. Fernandes disse...

Olá Gustavo!

Parabéns pelo belo trabalho exposto em seu blog. Já estou seguindo!

Aproveito para lhe convidar a conhecer o meu blog, e se desejar também segui-lo, será uma honra. Seus comentários também serão muito bem-vindos.

www.hermesfernandes.blogspot.com

Te espero lá!